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“Um corpo: nos reproduzimos através dele, existimos através dele, e nossa espiritualidade está muito mais conectada com a terra por ele.”

Por Cliver Ccahuanihancco Arque  (Quechua) e Carlos Madrigal and Carlos Madrigal (Mazahua/Jñatjo)

A diversidade de expressões identitárias tem sido um tema recorrente nos últimos anos. Conceitos e percepções foram estabelecidos sob os recorrentes efeitos da globalização no contexto urbano; no entanto, estes nem sempre respondem, traduzem ou incluem toda a diversidade que existe no mundo.

Kuenan Tikuna (Tariano), do Brasil, fala sobre as diferentes formas de narrar a realidade na perspectiva do gênero e da diversidade sexual. Narra a partir dos olhares da juventude, trazendo temas como o confronto com o contexto urbano, a identidade indígena e a diversidade.

É uma jovem indígena de 19 anos que pertence a duas culturas; o povo Tikuna do Alto Solimões por parte materna e o povo Tariano do Alto Negro por parte paterna. Trabalha como artista indígena, ativista, modelo e é comunicadora na Rede COIAB (Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira) e na rede Makira E'ta (Rede de Mulheres Indígenas do Estado do Amazonas).

Além disso, faz parte da coordenação executiva do coletivo Miriã Mahsã, que é o primeiro coletivo LGBTQIA+ Indígena do estado do Amazonas. Também faz parte da Juventude Indígena da FOCCIT (Federação de Organizações dos Caciques das Comunidades Indígenas Tikunas) de sua região. A Cultural Survival realizou uma entrevista com Kuenan para abordar questões de gênero e diversidade entre os jovens indígenas do Brasil.

“Desde quando nós, povos indígenas, estivemos nos nossos territórios a gente é violentado, ainda hoje e, principalmente, através dos nossos corpos. E eu acredito que hoje tudo, principalmente essas oralidades ocidentais que foram impostas sobre os nossos corpos, é também fruto da colonização que a gente tem.” comentou Kuenan ao se referir aos desafios enfrentados pelos povos indígenas.

Nessa mesma linha, a jovem indígena falou sobre como religião e cultura se chocam, causando conflitos na convivência social. “O gênero não era algo específico, por exemplo, para a gente. Se tratava muito mais de relações, da nossa conexão de respeito com a natureza e sobre dar continuidade também ao legado ancestral.”

O contexto urbano é muito mais violento

Kuenan Tikuna relata que para dar continuidade aos estudos universitários teve que se mudar para a cidade de Brasília, onde encontrou diversos desafios, mas também alianças para seu desenvolvimento pessoal e cultural. Ela ressaltou que nas cidades sempre há julgamento e preconceito sobre como uma pessoa trans deve ser, sentindo-se um corpo estranho para as pessoas da sua Universidade.

“Por mais que tenhamos essa falsa sensação de aceitação, infelizmente as pessoas aqui no contexto urbano são muito mais violentas. Confrontada com ser uma pessoa indígena, confrontada com ser uma pessoa trans. Então esses dois temas sempre acabam se cruzando”, afirmou Kuenan.

Além disso, ela mencionou o quão complicado foi ingressar em grupos e se sentir confortável, dada a violência de vários processos que envolvem o reconhecimento de manifestações de identidade e diversidade sexual de maneira única. As manifestações de identidade e diversidade sexual não incluíam as manifestações que existem, neste caso, entre os povos originários.

“Foram coisas realmente violentas que me traumatizaram até dentro do próprio movimento, principalmente dentro do movimento LGBTQIA+, que era muito branco. Então eu acho que desde o início o que eu procurava, e também entendo o porquê dessas pessoas, porque a gente também tem uma autodefesa antes de poder se abrir.”

Apesar do grande acolhimento que recebeu, foi difícil encontrar compreensão devido aos choques culturais quando colocados em perspectiva. Muitas dúvidas surgiram sobre se enquadrar em um estereótipo ou modelo de mulher trans; Para Kuenan por exemplo é fundamental ter cabelo curto porque “para a minha cultura tenho que cortar o cabelo porque é uma questão de deixar energia para trás”, disse. Muitos questionaram como ela poderia ser assumida como uma mulher trans se mantivesse essa aparência.

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Um corpo ligado ao território

Para Kuenan, a relação com seu território é assumida a partir de seu corpo. Há uma ligação desde o surgimento da sua pessoa, do seu povo e que a leva a regressar a este mesmo território ao culminar de sua vida. É nesta espiritualidade que se encontra a sua identidade, o que foi um desafio para as pessoas da cidade entenderem, dado que a cultura de massa torna os corpos mais sexualizados e estereotipados.

“Um corpo, porque através dele nos reproduzimos, existimos através dele e a nossa espiritualidade está muito mais ligada à terra por ele.” É esta expressão que Kuenan Tikuna usa para definir a si mesma, seu ser.

Quando é perguntada sobre quem é e a que gênero se identifica, Kuenan responde “O que há em mim?”, provocando quem a questiona a determinar a partir de que ponto de vista e de que perspectiva está percebendo a si mesmo e aos outros ao seu redor. “Eu tenho cabelo curtinho, que é algo muito cultural do meu povo, mas existem mulheres cis também que usam cabelo curtinho e nem por isso são menos mulheres”, referindo-se às percepções de cisgeneridade.

Então, quem é Kuenan Tikuna? É uma mulher trans, é uma pessoa indígena. Então, pra gente pra poder se fortalecer a gente tem que passar a se afirmar nesses espaços. Eu saí da comunidade com aquele pensamento, a gente não tem nem noção do que é gênero e sexualidade, e cair numa universidade e ser tudo uma coisa... Tudo um choque cultural também pra mim, foi um processo bem difícil.”

Muitos conceitos e pensamentos estabelecidos nos grandes centros urbanos não são identificados nas comunidades; pelo menos não o são da mesma forma ou com o mesmo nome. É por isso que Kuenan voltou para sua comunidade e, integrando a experiência de dois mundos, de seu povo e de sua vida na universidade, buscou ampliar esse conhecimento para que mais pessoas não sofressem inesperadamente os processos isolados e o choque cultural que ela sofreu.

Kuenan destaca “O que eu contribuí, acho que até agora, desde que nasci, sendo uma menina trans, foi principalmente educar as pessoas ao meu redor, por exemplo”. Além disso, considera que é necessário melhorar os sistemas educacionais e incentivar uma melhor compreensão das diversas expressões de gênero e sexualidade; não centrando-se apenas naquelas que vêm do hemisfério do norte e do ocidente.

A situação do Brasil é um convite à reflexão. Kuenan destaca que existe um número significativo de pessoas pertencentes à comunidade LGBTQIA+ no país. Segundo dados da Universidade de São Paulo de 2022, eles representam 12% da população nacional.

Embora haja avanços, ainda faltam análises de conjuntura que permitam a efetivação de políticas públicas voltadas à participação política e que melhorem a qualidade de vida dos grupos LGBTQIA+ no país.